segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Gurué (e suas montanhas de chá)


Da primeira vez que fui ao Gurué (sim, porque houve uma segunda, uns dias depois), fui de carro.

Deixei Africa a repousar da longa tirada desde Vilankulos e fui com mais 3 amigos até Gurué, às montanhas de chá, uns trezentos quilómetros a norte de Quelimane, na província da Zambézia.

Aí chegados, depois do descanso merecido foi altura de nos passearmos entre o chá. E folhas de chá é o que não falta nas montanhas do Gurué. Plantações a perder de vista cobrem toda a paisagem. Noutros tempos eram os portugueses a produzir a planta.




Terra de chá


Pela dimensão da terra que cobre a plantação e pelos vários centros de produção e armazenagem este era com certeza um negócio próspero.
Hoje em dia, moçambicanos e indianos partilham as terras e o negócio do chá. As instalações permanecem as mesmas, lembrando outros tempos.

- "Tenho muitas saudades do tempo dos portugueses. Os indianos são maus.", confidenciou-me um dos velhos guardas de uma plantação.

De visita a um dos centros de produção vimos como se trata a folha até à embalagem do produto final. Existem nove tipos de qualidade e todos eles são para exportação. Índia, África do Sul e Europa são os destinos daquele produto.







Visita a um dos centros de produção


O Gurué é uma pequena cidade como tantas outras em África.
No centro sobressaem as bonitas casas coloniais, o grande hospital e a pequena igreja. As rotundas, algumas mercearias e o cinema são de outros tempos.
Hoje as casas perderam o brilho que imagino terem tido, o hospital tem poucos meios, as mercearias pertencem agora a indianos e chineses e o cinema, dizem-me, está fechado. A grande maioria da população vive nos bairros, centenas deles, espalhados à volta da cidade.

Tudo nestes bairros se mantem em relação aos que já vi no resto de Moçambique. Crianças com fartura, centenas, milhares, sozinhas, rasgadas e sujas. Quase todas parecem felizes. A maioria brinca, outras ajudam a carregar água ou lenha, muitas transportam os irmãos mais novos às costas. Todos riem, uns olham-nos envergonhados, pedem doces, outros dinheiro. A maioria diz apenas "tátá" (olá).
As mulheres usam capolanas de cores vivas e bonitas. Os homens passam de bicicleta, o transporte mais usual em Moçambique. Cada vez há mais bicicletas (será este um sinal de desenvolvimento?). Vêem-se poucos carros e algumas motas chinesas.










Memórias de uma terra especial


Subimos até à "casa dos noivos", local conhecido pelas cerimónias de casamento no passado. No alto de uma das montanhas, depois de uma tortuosa estrada, ficam um conjunto de casas que seriam preparadas para receber as cerimónias de casamento.
Agora, pouco tempo depois do último guarda ter partido (por falta de pagamento) quase tudo foi destruído e vandalizado. Só a vista, sobre a cidade, no alto de tanto chá, parece não ter desaparecido.



"Casa dos Noivos"


No dia seguinte, depois da autorização necessária, subimos até à cascata. Uma queda de água fresca e limpa que está no alto de um dos centros de produção de chá. Mesmo se não existisse a queda, todo o percurso teria valido a pena. O verde das plantações a perder de vista, pequenas aldeias de gente local, árvores de bambu enormes, pontes artesanais atravessando pequenos cursos de água, o rio sempre presente, mágico. Um dos caminhos mais bonitos que fiz.

Lá do alto a vista é inacreditável. Apetece ficar. Depois de uns mergulhos estendemo-nos ao sol. Muitos habitantes locais, curiosos, iam-se deixando ficar, envergonhados a ver-nos ao longe. Os mais "corajosos" desciam até nós e ali ficavam, a ver-nos com toda a atençao, imóveis, com os olhos esbugalhados de curiosidade.





A cascata, uma das maravilhas do Gurué


Um grupo de cinco irmãs, embora muito reservadas e até assustadas, aproximou-se tal era a sua curiosidade. Fui até elas e apesar do seu mau português (em Moçambique, ao contrário de Angola, é raro encontrar alguém fora de Maputo que entenda perfeitamente o português) conseguimos comunicar.
Tinham ido apanhar uma espécie de escaravelhos, colocado uma centena deles dentro de um garrafão e iam agora para casa.
Quiseram mostrar. Explicaram-me que seria o jantar daquela noite. Ensinaram-me a prepara-los para os comer.

- "Então e comer? Come lá um para eu ver" - pedi eu;

- Riram-se todas. "Naaaada, tem de pôri nu lume".







As 5 irmãs e os escaravelhos



Descemos até à cidade no final do dia. Todo aquele ambiente único e com a luz de fim de tarde tornava tudo ainda mais mágico.
Tinha de ali voltar, de mota. Tinha de acampar naquele local, senti-lo uma vez mais, sem pressas.
Resolvi voltar sozinho, de mota, assim que regressa-se a Quilimane.


Depois do regresso a Quelimane despedi-me dos amigos e regressei ao Gurué. Uma vez que ia para norte optei por passar mais uns dias naquela cidade.
No primeiro dia, depois da viagem desde Quelimane resolvi ficar numa pensão. No dia seguinte, depois de concedida a autorização para atravessar o centro de produção, cheguei à cascata onde me preparei para passar a noite.

Claro que passado uns minutos de chegar ao local dezenas de habitantes locais foram dar-me as boas vindas. Animados com a mota (que "parece carro") deixaram-se ficar.



As boas vindas no regresso ao Gurué



Enquanto não escurecia fui dar uma volta a pé nas redondezas com um "guia", um habitante local que não falava mal português e que me ia respondendo a algumas das perguntas que lhe ia fazendo.

- "Então mais velho, não existem muitas cobras por aqui, no meio deste chá todo?! Os homens que trabalham aqui não são picados?!" - perguntei.

- "Nada boss. Os cobra não faz confusão com nós", respondeu.

Depois de algumas horas a passear voltámos para o local, no cimo da cascata, onde iria montar acampamento.
Mal chegámos, uma cobra, verde brilhante, estava estendida junto da mota. Imóvel permaneceu sem que ninguém se aproximasse.

Pedi a minha mala com o equipamento fotográfico a um dos homens. Queria colocar a objectiva zoom, o "verdadeiro canhão" para registar a imagem.

Naquele momento duas dezenas de locais estavam ali, curiosos e atentos.

- "Vou dar tiro na cobra com esta pistola" - brinquei eu, mostrando a objectiva.

Muito atentos assustaram-se quando virei a objectiva na sua direcção e terei umas fotos.

"Isto é para tirar foto!!!"- esclareci.

Todos se riram. Entretanto a cobra, fugiu em direcção à água, desaparecendo no meio da corrente.






-"Querem música?" - perguntei eu.

O sorriso deles foi imediato e todos começaram a gritar que sim.

-"Mete a cassete da música do Malai" - pediram-me.

"Só tenho mesmo essa cassete, meu cota" - respondi.

De seguida acendemos uma fogueira, bebemos "aguardente" de fabrico caseiro e dançamos ao som de Bob Marley.

Ficámos umas horas a ouvir aquela cassete, bebendo aguardente e dançando à fogueira.







Despedi-me de todos e fui dormir.





Na manhã seguinte, antes das cinco da manhã, já com sol, alguns vieram dar-me um "feliz dia boss".
Agradeci e com o humor de quem dormiu pouco e acaba de ser acordado respondi:
-"Ok, vão é trabalhar".




Arrumei a "trocha", passei ainda de manhã pela plantação e tirei fotos aos homens que ontem bebiam e dançavam comigo, agora a trabalhar no meio do chá.







Despedi-me do Gurué e segui para Nampula, sempre por trilhos, pela estrada menos usada, em terra batida. Cheguei à cidade no final do dia coberto de poeira. Já tinha saudades do pó.





No dia seguinte estaria a arrancar para a ilha encantada. Queria muito ir à Ilha de Moçambique.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Maputo-Gurué

Desde a África do Sul que não via mar. A última vez que estive perto foi junto das geladas águas de Jeffreys-Bay, num dia em que o mar estava invulgarmente calmo, sem as suas famosas ondas.
Agora em Moçambique, iria ter a oportunidade de ver outro Mar, o Índico de águas quentes e claras, verdes e azuis, areia fina e branca.

Comecei por seguir em direcção à praia de Tofo, na província de Inhambane, algumas centenas de quilómetros a norte de Maputo.
Sempre que têm um fim-de-semana prolongado Maputenses e outros rumam a estas praias para aproveitar o que de melhor esta terra tem: o mar.

Saindo de Maputo o cenário muda. Como acontece em Angola, a pouca distância da capital, o país real começa a fazer-se sentir. Atravesso aldeias, pequenas vilas e seus mercados de beira de estrada, compro caju em Macia, passo em Xai-Xai (ainda sem ver mar) e chego algumas horas depois a Quissico. A cor das suas lagoas fizeram-me parar. Aquele sim, era o cenário perfeito para a viagem: boa estrada, rodeada de palmeiras e ao fundo o azul inacreditável das lagoas. O intenso cheiro a coco dava aroma ao cenário.


Delicioso caju "de beira da estrada" em Macia


Quissico e suas lagoas


(Quissico também é conhecido por ser a vila de onde saem as melhores timbila de Moçambique, um dos instrumento tradicionais deste país)

Andar de mota tem destas coisas: por vezes chove, faz frio e sentimo-nos pequenos na estrada, desprotegidos. Atingem-nos insectos de todos os tamanhos (alguns parecem pássaros), atingem-nos os próprios pássaros, morcegos e uma mão cheia de bichos voadores. Levamos com lama, fumo de escape e muito pó; pequenas pedras saltam a toda a hora do asfalto e água, gasolina e outras tantas coisas "entornadas" no asfalto quase nos fazem (ou fazem mesmo) cair; e cabras, porcos, bois, burros, cães e bicicletas, pequenas motas, carros, camiões e crianças, adultos e velhos arriscam atravessar o nosso caminho; doem-nos as costas, os pulsos, o rabo; o fato pesa, é apertado, é quente, é chato.
Tudo isto se esquece no momento em que se passa por Quissico ou qualquer outro sítio que nem aparece no mapa e se sente o cheiro de coco ou de terra molhada ou da brisa que vem do mar ou da manga madura que milhares de aldeias têm com sobra.
Tudo se esquece quando se conduz durante um final de tarde em África, com uma ligeira brisa de fim do dia, confundindo o nosso olhar com as cores da população e da Natureza. Tudo parece suspenso naquele momento. É quando me costumo levantar da mota, continuar a rolar, tentando fixar aquele momento em mim, para sempre. Nesses momentos tenho poucas dúvidas de que sou feliz.

Cheguei num desses momentos a Tofo. Depois, procurei estadia e montei a minha tenda na areia, na praia principal.


Já tinha algumas saudades de acampar. Mesmo abrigado pela vedação de um backpacking da vila estava na areia onde tive o prazer de acordar e logo de seguida ir lavar a cara ao mar, ao Índico. Foi a primeira vez que mergulhei neste Mar.


Ainda a dormir mergulhei pela primeira vez no Índico


Deixei-me ficar algumas horas passeando no extenso areal, conversando com os pescadores locais e dando uns mergulhos naquelas quentes águas. Mais tarde ainda passei pela Praia da Barra, depois da tentativa frustrada (e desgastante) de ir à Praia de Tofinho, antes de rumar a norte. A estrada de areia até essa praia é "areia a mais para a minha camioneta" e com a carga toda torna-se impossível enfrentar os quilómetros de areia solta. Mais de meia tonelada em duas rodas é demais para aquele tipo de caminho e por diversas vezes só com ajuda de populares consegui continuar a rolar.




Pescadores locais em Tofo


Não vai a lado nenhum... Mais um "atolanço" a caminho na Praia da Barra


Cansado, mais pela hora passada na areia que pelas várias horas de asfalto que se seguiram, cheguei a Vilankulos, com vista para o Arquipélago de Bazaruto.
Antes ainda cruzei o Trópico de Capricórnio. Lembram-se daquela fotografia quando passei por este meridiano na Namíbia. Pois desta vez em vez de poeira e desolação das estradas de gravilha da Namíbia tinha as palmeiras e aldeias de Moçambique.


Passagem pelo Trópico de Capricórnio em Moçambique (Província de Quelimane)


Há alguns tempos atrás na Namíbia: contraste total de paisagens



Fiquei num pequeno backpacking onde acabei por conhecer o Alexandre e a Rita. Entre franceses, sul-africanos e ingleses eramos os únicos portugueses naquele local. Trocámos estórias e contactos, ficando de nos encontrar em Pemba ou na Ilha do Ibo, uns milhares de quilómetros para Norte. O nosso contacto não ficou por ali...

No dia seguinte estava num barco "tradicional" para um dia de visita a uma das ilhas do Arquipélago. Apesar do céu totalmente encoberto e de uma chuvada durante o trajecto todo o cenário era incrível: nem o sol parecia fazer falta.
Durante a travessia dezenas de locais apanhavam caranguejos aproveitando a maré baixa. Isto passa-se a várias milhas da costa o que transmite uma visão peculiar àquele cenário. Na ilha milhares de peixes, lagostas e caranguejos esperavam para serem observados, só observados visto ser esta uma reserva protegida. Equipado com óculos, tubo e barbatanas fiz-me ao mar para umas horas de snorkling. Depois o almoço, feito no barco, esperava porque mergulhar traz-me sempre fome.


Locais a apanhar caranguejo ao largo de Bazaruto




Travessia para uma das ilhas do Arquipélago de Bazaruto


Almoço preparado a bordo


Uma volta pelo interior da ilha revelou inúmeras aldeias. Visitei as que pude dado o tempo que tinha, brinquei com os miúdos, apreciei o material de construção das cubatas, bebi um trago de uma mistela local fermentada, cujo nome não recordo, lembrando-me apenas que me custou 5 meticais e da dificuldade que foi engolir aquele líquido esbranquiçado adoçicado.






Os putos numa das várias aldeias da ilha


Bebida fermentada típica

Brincadeira ou novo uso para o preservativo?!


Apresso-me pois os guias já esperam e não tenho vontade de passar a noite ao relento. Seguimos então em direcção à costa, desta vez à vela, aproveitando o vento do final da tarde. Por incrível que pareça o regresso, ao sabor do vento, foi mais rápido que a ida, usando o motor.


De volta à costa


No dia seguinte esperavam-me quase quilómetros até Quelimane. Só me dou conta disso quando no dia anterior ao final da tarde simulo no GPS o trajecto. Nem eu nem as pessoas com que falo acreditam que vou conseguir cobrir aquele distância num dia. Em África, para o melhor e para o pior pouca coisa acontece como prevêmos. Ao contrário do que pensámos consegui fazer os 970km e "aterrar" em Quilamane no final do dia.

Depois de enfrentar o calor abrasador na província de Sofala, atravessar milhares de aldeias, tirar fotografias aos locais, atravessar o rio sobre o Zambeze, passar pela Gorongoza ao som de mais de uma dezena de álbuns de música, abastecer-me de gasolina na rua, comprar mel, beber água, muita água e mais água, comer bolachas e bolinhos e chamusas, apanhar uma multa por excesso de velocidade (quem anda a 60 numa estrada como aquela?!),cheguei finalmente a Quelimane no final da tarde onde um carro com amigos me esperava para quatro horas de estrada até ao Gurué.


"Posto" de combustível com venda de mel (em garrafas de plástico)



Rostos locais durante o trajecto


1000 meticais (+-20 Euro) de prejuízo...


Uma das aldeias onde descansei um pouco


Travessia sobre o rio Zambeze


Apesar do cansaço, um sorriso na chegada a Quelimane


Chegámos ao Gurué de madrugada onde tombei... na cama.

Estava na terra do chá. Nem sabia que Moçambique tinha chá. Fiz 1.350 quilómetros nesse dia. As coisas por aqui nunca acontecem como esperamos.

Tudo me vai correndo bem.